QUANDO OS PERSONAGENS SE VIRAM UNS CONTRA OS OUTROS

 



QUANDO OS PERSONAGENS SE VIRAM UNS CONTRA OS OUTROS


Texto de Rafael Castelo Branco de Oliveira Torres
Imagens de  Arcanedist


RPGs são, em geral, e D&D em particular, jogos cooperativos. Na Teoria dos Jogos, aqueles que possuem essa característica são marcados pela resolução de problemas, desafios e enigmas, fazendo com que os jogadores sejam parceiros e não adversários, e assim a vitória, quando há, é conquistada de forma conjunta.


Acho que vocês já perceberam certa semelhança. Nos jogos cooperativos, a dinâmica cria relações de confiança e parceria. À medida que o jogo avança, aumenta-se o grau de empatia entre os jogadores e o grupo sai fortalecido. Por isso esse tipo de jogo é valorizado em dinâmicas de grupos de trabalho ou em outras relações na qual se busque estreitar e fortalecer os laços entre os participantes.

 

Jogos cooperativos em geral não estimulam o blefe, a enganação, ou a trapaça, pois não se tira vantagem um do outro. O benefício de um deve acompanhar o benefício de todos. Esses jogos são pequenas metáforas para vários campos da vida em sociedade, ainda que muita gente não consiga compreender um ou outro.

 

Jogos de Tabuleiros como Eldritch Horror, D&D Adventure System, Zombicide, Arkham Horror, Escape Tales, Black Stories (até certo ponto), entre outros, tem esse caráter. Jogos de Sala de Escapada (escape Room) também seguem essa linha. E assim o fazem a grande maioria dos RPGs.

 

D&D 5ª Edição é um jogo que foi matematicamente pensado com aventureiros se unindo e usando suas habilidades em conjunto para enfrentar um determinado número de desafios em um determinado espaço de tempo chamado Dia de Aventura (se quiser ler sobre o Dia de Aventura, leia nosso texto sobre Montar Encontros AQUI). Assim, cada característica matemática do jogo com Classe de Armadura, Pontos de Vida, Ataque, Dano, Vantagem e Desvantagem, entre outros, foram pensados como recursos a serem usados durante esses vários encontros. Esses encontros serão realizados com criaturas que terão habilidades (e estatísticas matemáticas) planejadas para desafiar esse grupo de aventureiros. Por isso monstros e Personagens do Mestre possuem determinadas habilidades, diferentes dos Personagens dos Jogadores. Seu uso é de duração curta (pois serão usados como adversários em um breve espaço de tempo até serem, supostamente, derrotados). Sua Classe de Armadura tende a ser mais baixa que a de um PJ pois ele deve ser acertado mais vezes, tornando o combate mais interessante e divertido. Porém, eles devem ter mais Pontos de Vida, resistindo mais aos golpes dos PJs. E virão em grupos, mas causando pouco dano de forma individual. Assim vão aos poucos compondo um dos elementos do encontro. Nada disso acontece quando jogadores se enfrentam. E esse é um dos problemas.





Jogador contra Jogador: Matemática

 

Como as habilidades das classes, bem como o cálculo de usos, são pensadas para enfrentar monstros, armadilhas e afins, elas não se encaixam no design para o enfrentamento de outro personagem com habilidades de classe de jogador. Muita coisa é inútil, outras não funcionam tão bem e algumas funcionam “bem demais”. Esse tipo de disputa é completamente desequilibrada, o que não é divertido. É como tentar jogar golfe com uma bola de basquete em uma rampa de skate. Você pode tentar, mas seria mais eficiente se você usasse as ferramentas corretas, como jogar um jogo competitivo.

 


Jogador contra Jogador: Sociologia 

 

Mas veja, o problema matemático, ainda que seja sério, não é o principal. Há o problema social. Pessoas sentam numa mesa para jogar um jogo cooperativo e alguém surge com um comportamento disruptivo e destrutivo. A confiança se perde, a diversão vai embora. Surgem as discussões. Demais Jogadores e o DM são obrigados a tomar partido ou, no mínimo, julgar uma discussão entre dois participantes, o que não é o papel de mais ninguém nessa mesa. É como quando um casal de namorados começa a discutir sua relação em meio a uma reunião de amigos. Quando é algo sério, todos compreendem, mas ninguém gosta. Quando é algo banal, aquilo deveria ter sido guardado para ser resolvido em outro momento, caso a discussão seja inevitável, e não trazida a tona e estragado aquele momento de diversão entre amigos.

 

Muitos jogadores se agarrarão a idéia de que “é isso o que meu personagem faria”. Isso pode ser verdadeiro, mas também é vazio e sem significado. O jogador criou o personagem, então ninguém melhor que ele para julgar “o que o personagem dele faria”. Mas ao mesmo tempo, ele é o criador e não é um escravo de sua criação. O personagem não existe sem o jogador e ele pode perfeitamente julgar de forma diferente e arrumar uma explicação qualquer para que, naquele momento, ele faça algo diferente. Mesmo que o personagem se arrependa depois. Afinal, quantas vezes na vida não fazemos algo que decididamente não faríamos em outra situação, mas para manter um bom convívio social, manter o emprego ou por nenhum motivo senão um desejo súbito e bizarro de fazer algo que nunca desejamos fazer (e quantas vezes não nos arrependemos e juramos nunca mais fazer algo assim novamente, e tantas outras vezes que ainda assim fazemos de novo!). Então ok, concordamos que “é isso que meu personagem faria” é uma desculpa rasa e porca para justificar uma ação que vai estragar a diversão dos demais.

 

Mas nós sabemos que às vezes apenas não e pode evitar. Quando isso não é algo que se possa pensar “será que eu não consigo imaginar nenhuma forma do meu personagem simplesmente deixar pra lá?”, então deve entrar em cena a resolução do problema. Como resolver uma disputa entre personagens?

 

A primeira coisa é definir se a disputa é de fato entre os personagens ou entre os jogadores. Pare, respire e analise a situação. Lembrando que eventualmente pode acontecer de tudo começar entre personagens e se tornar pessoal, ou vice versa.

 





Quando a Disputa é entre os Personagens

 

Se dois personagens discutem a respeito de um plano, de uma ação tomada por um deles ou por qualquer outro motivo, pare o jogo e faça com que os jogadores conversem. D&D, assim como outros sistemas, não possui boa resolução de problemas entre PJs e é extremamente ruim permitir que uma jogada de dados resolva tudo, tirando a ação dos jogadores. Faça com que a conversa seja feita sem euforia ou sem tensão. Deixe que outros jogadores participem. Todos podem e devem palpitar. Não importa se envolve apenas dois personagens. Todos estão jogando e o objetivo é a diversão de todos. Além de roubar os holofotes, essa discussão tende a tirar boa parte da diversão do grupo. Como Mestre, seu papel é de fazer com que os jogadores cheguem a uma solução.

 

Sugira alternativas. Permita que os jogadores olhem para suas fichas e argumentem que seu personagem é muito diplomático, ou que se expressa bem, ou que sempre foi um bom líder ou um bom estrategista. Deixe que os argumentos fluam e, se achar necessário, forneça novos argumentos. Não é uma discussão pra saber qual jogador tem melhor oratória e sim uma conversa para se chegar a um acordo.

 

O objetivo aqui é que eles decidam qual personagem venceu o debate, ou se ninguém venceu, em comum acordo. Ou determinar uma forma de disputa válida, ainda que não seja justa ou a melhor, mas que seja de comum acordo (por exemplo, o personagem vencedor será o do jogador que tomar mais rapidamente um copo de coca-cola enquanto planta bananeira sem deixar que o refrigerante saia pelo nariz).  Talvez simplesmente se decida por uma rolagem de dados, no final das contas. Ou os jogadores decidem que um dos personagens teve a melhor ideia. Ou que as ameaças de uso de força foram o suficientes. Pouco importa, desde que isso seja feito em comum acordo.

 

Busque perguntar aos jogadores como seus personagens estão se sentindo. Será que Juca não é capaz de ceder diante dos argumentos de Jorge? Será que Jorge não acha que vale a penas perder a discussão mas não perder o companheiro de batalha que o salvou naquele encontro contra terríveis kobolds?

 

É importante deixar claro que o resultado deve ser respeitado, claro. Ou seja, se a disputa será resolvida por quem conseguir dar três cambalhotas primeiro, que o vencedor seja de fato vitorioso e essa vitória não seja contestada com o perdedor (ou ambos) engarrafando a briga para a próxima discussão em jogo.

 

Caso os jogadores não cheguem a um consenso, então a briga, discussão ou o que quer que tenha acontecido nunca aconteceu. Sem o acordo entre as partes, o restante da mesa ou o Mestre (ou um conjunto de ambos) decide o que aconteceu antes de forma a tornar a narrativa fluida. Afinal, RPG é um jogo cooperativo e se nenhuma das partes é capaz de chegar a um ponto em comum, então eles estão falhando em cooperar.

 

Quando acabar a sessão, sente e converse com os jogadores e tenha certeza de que o assunto está morto e enterrado. Em último caso, retire um dos jogadores da mesa. Ou ambos. Ou desfaça aquela mesa. Algumas vezes é necessário se tomar decisões drásticas.

 




Quando a Disputa é entre os Jogadores

 

Conflitos entre jogadores não podem ser resolvidos com pedra, papel e tesoura ou com quem faz mais pontos na primeira fase do Candy Crush. Infelizmente aí entra o papel do Mestre (e do restante da mesa) para mediar a situação. Nunca permita que uma discussão entre jogadores tente ser resolvida em jogo! Se necessário, termine a sessão e deixe que os jogadores conversem. Talvez a briga seja a respeito de quem pegou o último pedaço de pizza, ou a respeito de uma possível investida romântica não autorizada. Há muitas razões pelas quais as pessoas discutem. Na pior das hipóteses, teremos a mesma resolução de problemas do caso anterior: Retire um dos jogadores da mesa. Ou ambos. Ou desfaça aquela mesa. Algumas vezes é necessário se tomar decisões drásticas.

 

Esperamos que esse pequeno texto ajude Mestres inexperientes ou já bastante rodados a entender que o jogo não precisa e nem foi feito para disputas entre personagens, ou para ser usado como uma disputa entre jogadores.

 

Claro, nada impede que a sua mesa faça uso do jogo como quiser. Talvez vocês sejam de fato adeptos de jogar golfe com uma bola de basquete numa pista de skate. Quem sou eu pra te dizer que você se diverte da forma errada, não é mesmo?

 






FINALIZANDO O TEXTO

 

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Bons jogos!