NÃO SEJA UM MESTRE TRAPACEIRO!


ROUBANDO NOS DADOS?


Alguns Mestres se frustram com relação ao aleatório em jogos de RPG (o famoso "dice fudging"), e como tratamos neste blog de D&D, em jogos de Dungeon and Dragons. Alguns acreditam, por exemplo, que a morte de um personagem, quando não é  ÉPICA, é algo desapontador, decepcionante. E estranhamente escolhem jogos, como o D&D, onde isso é parte do jogo. Estranho porque D&D tem isso em sua essência. É um jogo onde o fator aleatório é importante. O que esses Mestres fazem? Torturam os dados para que eles contem a história que eles querem. Não importa se em uma aventura linear ou em uma aventura aberta, este Mestre tira o poder de decisão dos jogadores (que decidiram se arriscar em algo) para decidir pelo sucesso ou falha. Parece que algo acaba acometendo esses DMs como uma síndrome de conhecimento maior, onde eles sabem o que é melhor, e eles são seduzidos a determinar que sua criatura não morra em determinada cena, ou que o jogador consiga derrotá-la em outra, ao seu gosto. Geralmente, os jogadores que gastaram recursos de seus personagens para tentar vencer o desafio não sabiam que este desafio tinha um "timer" que faria com que eles tivessem sucesso total, parcial ou nenhum "independentemente do que fizessem", pois, os pontos de vida e demais características defensivas da criatura acabavam por se moldar conforme o desejo de apenas uma pessoa na mesa - O MESTRE. Quando percebem que essa é a experiência que estão tendo, artificial e conduzida, muitos jogadores tendem a se frustrar. Se não percebem, o Mestre se anima e acredita ter executado com sucesso o engodo. E o jogador enganado sai da sessão feliz, como um cônjuge traído que ignora o que acontece em sua relação quando ele não vê. O pacto de confiança na mesa não existe, mas os jogadores ainda não sabem.



Há uma série de problemas com esse tipo de conduta:

  • Se o Mestre decide qual o momento da morte de uma criatura, na prática ele decide quem deu o golpe final. Ou seja, ele pode passar uma impressão de favoritismo, mesmo que não haja (ou que ele não perceba ou saiba).
  • Por que fazer um adivinho, um encantador ou um ilusionista se quando for importante essas habilidades falharão por não gerarem o momento "épico" esperado pelo Mestre?
  • Em que parte entra a colaboração dos jogadores com a história se o Mestre pode influenciar em todas as rolagens, inclusive nas rolagens sociais, nas de exploração...?


Existem algumas formas de se reverter um tanto do efeito aleatório sem ser enganar os jogadores. E aqui vão algumas sugestões para que esses Mestres tenham opções melhores do que trapacear.


1 - ESCOLHA OUTRO SISTEMA!



Há mais do que só D&D no cenário de jogos de RPG. BEM MAIS! Talvez você tenha começado a jogar RPG por este sistema e se sinta à vontade nele. É compreensível. Mas saia de sua zona de conforto! Há jogos em que os jogadores poderão usar recursos para evitar as falhas, seja gastando um ponto de experiência, vontade, sorte... e isso permitirá refazer a rolagem ou transformar a falha em um acerto simples. Em outros jogos permitem que o jogador escolha o que usar em termos numéricos. Algo como se ele tivesse rolado o D20 20 vezes antes da sessão e fosse escolhendo o que usar durante o jogo. Há também jogos em que os jogadores possuem recursos de rerrolagem ou recursos para sofrer menos dano. O jogador possui nesses jogos agência sobre o que acontece, e isso é melhor do que um Mestre que é obrigado a corrigir o rumo dos eventos por mal planejamento ou por sorte ou azar nos dados.



2 - DÊ AGÊNCIA AOS JOGADORES SOBRE SEUS DESTINOS!



Este é outro ponto. Roubar nos dados não dá agência aos jogadores. Eles são passivos em meio ao que afeta o jogo. Pode parecer emocionante, mas é um carrossel. O jogador está em cima do cavalinho, subindo e descendo, dando a volta no circuito, sem surpresas, mesmo que ele não saiba e não perceba que não há nada que ele possa de fato fazer. Como dar agência aos jogadores? Como esse é um tema sobre mecânica e sistema, não vou falar sobre dar agência no enredo. Isso pode ser discutido em outro post, se for da vontade dos visitantes do blog. São opções mecânicas melhores do que roubar atrás da divisória do Mestre, nos dados ou nas estatísticas do jogo:

A - O Talento Sorte

O Talento Sorte é melhor do que todos os outros talentos descritos no livro e vários Mestres o proíbem. Inclusive Mestres que roubam nos dados o proíbem. Não faça isso! Se o seu problema é com os valores aleatórios, dê o talento a TODOS OS PERSONAGENS, gratuitamente, no primeiro nível! Mais do que isso, se você conseguir se libertar de rolar os dados atrás da divisória (afinal, você deixou o vício de roubar nos dados!), você pode dar a você, Mestre, também o talento Sorte, podendo usar as rerrolagens entre todos os PdMs durante a sessão (talvez o dobro de vezes, se você achar realmente necessário, mas acredito que uma só vez é o suficiente). Assim, quando os personagens errarem, os jogadores podem escolher rerrolar. OS JOGADORES fazem a escolha. Eles têm a agência de "roubar" nos dados! Quando eles decidirem e não quando você decidir. Liberte-se de controlar tudo!

B - Pontos de Inspiração

Pontos de Inspiração, em geral, são usados raramente e de forma meio despreocupada pelos Mestres e jogadores. Transforme o sistema em algo maior. Permita que jogadores que se dedicam a interpretar (lembrando que interpretar não é necessariamente representar) seus personagens com seus objetivos, falhas e peculiaridades recebam algo melhor! Faça com que pontos de inspiração seja uma mecânica que permita transformar uma falha em um acerto, ou um acerto em um acerto crítico (de qualquer personagem ou criatura na cena)! E seja mais generoso com os pontos. Talvez todos sempre ganhem um ponto no começo de cada sessão. Ou os pontos possam ser acumulados. Faça desse recurso algo maior do que é, resolvendo seu problema com a aleatoriedade do sistema sem que você tenha que decidir tudo.

C Pontos Heroicos

A regra opcional de Pontos Heroicos (DMG 264), que de certa forma substitui uma antiga regra de outras edições que traziam pontos de ação, garante a cada personagem um total de 5 pontos + metade do nível do personagem de pontos heroicos a cada nível (sendo 5 no nível 1) e que zeram ao subir de nível, ou seja, não são somados aos novos pontos ganhos e sim substituídos. Esses pontos permitem ao personagem, ao serem gastos, adicionar 1d6 a uma rolagem ou substituir uma falha num teste de morte por um sucesso. Mais uma opção onde a agência é dos jogadores!

D - Pontos Heroicos e Vilanescos

Cada personagem recebe 1 ponto heroico quando sobe de nível para cada dois níveis que tiver, mínimo de 1 (ou seja, começa com 1).  Ele pode gastar apenas 1 ponto heroico por sessão e os pontos só são repostos ao subir de nível (e assim como na opção anterior, pontos não gastos são perdidos ao subir de nível). Esses pontos podem ser gastos para que o personagem deixe de rolar um D20 e tire um 20 automático (mas que é apenas um sucesso automático em caso de ataque, mas sem gerar qualquer efeito adicional, como um crítico), ou faz com que o Mestre tire um 1 automático. Ao gastar esse ponto, o jogador passa esse ponto para o Mestre. O Mestre então pode usá-lo como ponto vilanesco, que será usado no máximo uma vez por encontro, permitindo que ele não role um dado e "escolha um 20" em seu lugar (que, da mesma forma, não é um acerto crítico). Pontos Vilanescos não usados no final da sessão são perdidos. Esse tipo de regra é inspirada em outros jogos de RPG e também permite aos jogadores decidir quando usarem seus recursos e influenciarem (ou descartarem, no caso) a aleatoriedade dos dados.



3 - NÃO SEJA REFÉM DOS DADOS!



Mas espera... Não era para aceitar as rolagens? Agora o Mestre deve roubar? Não! O ponto é outro: Não crie eventos em que a rolagem determina todo o desencadear das ações e, sem ela, não há jogo. Não deixe a única informação nas mãos de um único Personagem do Mestre que precisa ser convencido com uma rolagem de Carisma a partilhar essa informação sem a qual a história não acontece! Se criar essa opção, faça com que outras existam para que a história siga, ou crie ainda outras vertentes da história, outros caminhos com a consequência dessa falha diplomática, sem que isso determine o final do jogo. Se a única forma de se passar pela sala é achando a porta secreta e eles dependem de uma rolagem para encontrá-la, e não poderão refazer o teste, e se falharem eles nem descobrem o restante da masmorra que era o que havia para aquela sessão, então você se tornou refém de uma rolagem de dados. Se a única forma de chegarem a um local essencial é acharem uma passagem, permita que haja alguns meios de fazê-lo e crie consequências pro caso dos jogadores falharem de todas as formas (e você não estiver usando nenhuma das opções sugeridas logo acima, no ponto nº 2). Usar a mecânica de Pontos de Trama ("Plot Points" no original) pode ser uma saída elegante e dinâmica para evitar que você caia nessa armadilha.

O ponto desse texto é: não há nenhum motivo justo para você trapacear nos dados! Liberte-se da obrigação de controlar o jogo e permita que os jogadores decidam seu próprio destino. Use seu escudo do Mestre apenas para consulta de tabelas, mapas ou estatísticas de Personagens do Mestre, armadilhas e afins. Experimente começar uma nova mesa com essa dinâmica. É provável que você nunca mais queira voltar ao seu antigo vício!

Bons jogos!